sábado, 30 de outubro de 2010

os dias

dia adormecia noite
noite amanhecia dia
sexta-feira dormia sábado
sábado acordava domingo
domingo virava sexta-feira
segunda-feira nunca existia
todo dia era dia, noite e dia

Voo

Tento durar, acabo.
Tento acabar, esqueço.
Tento esquecer, acordo.
Talvez acordar, já passou.
Não posso ficar, vou.

Pedra rosada

Rios escorridos nos primeiros janeiros
Brasas fugazes dos últimos dezembros
Lembranças corridas, em tanto invento
Abrem-se nas memórias dos longos abris
E se perdem em tempos de novos novembros
Misturando água, fogo e desejo, um só elemento

917 lembranças

Na hora daquele quarto
o tempo só existia ali
naquele quarto
e o mundo
também.

Nenhum lugar

Dia que não existe
lugar de chegar,
corpo ou universo,
tudo é exílio.

saudade

sempre lembro do dia em que fomos
tudo aquilo que todos buscam
o tempo todo, a vida inteira

diurno noturno

não sonho mais quando durmo
e quando acordo sonho mais
mas não acordo mais
quando sonho...

sonho

chego quase perto
perto quase toco
e quando mais
estou perto
desperto

impossível

aconteceu
naquele dia
por todas as horas
e nos dias seguintes
por todos aqueles dias

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Lavador de pratos

Lavo pratos na cozinha de um restaurante chinês. Sem nenhuma eficiência. Devagar e distraído. Sempre prestes a ser demitido. Mas por alguma razão, nunca sou. Volto todos os dias. Ninguém fala nada. Ninguém me olha. Então volto de novo. Preciso do emprego. Então continuo. No vai-e-vem das pilhas de pratos, sinto fome. Vontade de pegar restos de comida que sobram nos pratos. Quase tenho coragem. Mas não dá tempo. Garçons e afins se atropelam na porta. Todo mundo reclama da minha lentidão. Sou desorganizado com as louças. Deixo as pilhas ficarem cada vez maiores. Mas finjo não compreender nada. Continuo. Enquanto a água limpa escorre quente, resseca a pele. Os dedos enrugam. Estou no calor das panelas fervendo. Tudo demora. O suor pinga da testa. Arde o olho. Queria ouvir uma música talvez. Mas só há o barulho da pressa dos talheres que batem nos copos. Sinfonia articulada dos segundos, que passam inteiros. De um em um. Segundo um ritmo pesado e lento. A hora de embora não chega. Até de madrugada, quando misteriosamente tudo acaba. Cozinha pronta para o dia seguinte. Então vou. No caminho até a estação do metrô, o vento escuro de janeiro em Canal Street dá saudade de uma casa qualquer.

Nova Iorque, 1988

Na pensão da dona Flor
Os beliches se revezavam
De dia, os trabalhadores da noite
De noite, os trabalhadores do dia
Imigrantes errantes
Nos lençóis mal trocados
De todos os submundos
Em sonos claros e escuros
Sonhavam fazer uma América
Há muito tempo perdida...

domingo, 24 de outubro de 2010

lágrima

gota de sal
cai pura
queima
lava e
cura

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Desistência

De repente,
dia não chega
tarde se vai
noite não vem
madrugada sem
nada, não sou mais
ninguém além de
um só, que passou
aquém, de ser alguém.

Despedida

Na hora das partidas
As palavras morrem
No olhar que se cala
E só vejo meus olhos
Pelo olhar dos outros
Olhos que se partem
Nas horas partidas

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

prisioneiro

Meu corpo é
minha prisão.
Perpétua.

esquecimento

chove devagar
quase venta
véu escasso
água lenta
que se cala
no cimento

domingo, 17 de outubro de 2010

Noventa graus

Mundo redondo
formas quadradas
retas, retangulares
portas, portões, janelas
quadras, quartos, sobrados
tapetes, lençóis, televisores
livros, grades, porta-retratos
celulares, telas, monitores
prédios, gavetas, vagões
ruas, travessas, esquinas,
palavras, fonemas, poemas
molduras...

Madrugada




O vento cortante
A cidade vazia
Poucas luzes
Rua deserta
Noite tão fria
Escrevo no escuro
Caminho no tempo
Não tenho nada
Nem sede
Nem fome
Nem sono
São poucos de mim
Talvez nenhum
Seus olhos me olham
Mas deixo passar
Até nunca mais
Preciso viver
O próximo instante
E se só houvesse palavras?

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Uma passagem


A passadeira passa
O ferro esquenta
A pele arde
A lã estica
O ombro tomba

A passadeira passa
A roupa alisa
O corpo amassa
A vida corre
O tempo para

A passadeira passa
A tristeza fica
O humor se vai
A ação repete
O amor não tem

A roupa é branca
A pele escura
A tábua dura
A esperança cura

A passadeira passa
A pilha abaixa
O calor sobe
A alma esfria
O rádio alivia

A passadeira passa
O tecido amacia
O coração exaspera
O dia silencia

A passadeira passa
As horas ralentam
Os anos acabam
A vida sobrevive

A passadeira passou
Hoje o dia calou
Ninguém notou
O passado a levou
Uma outra chegou

No mesmo compasso
Outra passadeira
Passa passo a passo
Mais um dia

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Amores perdidos

De repente.
Tudo se esvai.
A presença se vai.
A ausência silente.
Tão presente, pressente.
Não há mais procura. Nem cura.
A desistência prevalece. Amortece.
A paixão adoece. Entristece. Embrutece.
Não há mais forças. Nem prazer. Nem dor.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Amores proibidos

Plataformas, trens, passos, espaços apertados
Vagões, pessoas, andares, olhares trocados
Mãos, pernas, esperas, ombros, braços tocados
Carros, calçadas, escadas, distância, de um passo
Saguão, sangue, elevador, dor, demora, de um quarto
Cama, calma, pressa, depressa, desejo, descompasso
Sombras, copos, beijos, enlaces, encaixes perfeitos
Desespero que arde, na tarde, revela, tarde tão bela
Tarde que passa, tarde tão tarde, e a noite não tarda
Tudo se esvai, sinais apressados, cotidianos insanos
Multidões, buzinas, celulares, ruídos aflitos, mundanos
Cores reais em preto e branco levam os amores
Errantes ao eterno desterro de serem amantes

Amores finitos

Equilibrar-se na crua incerteza
Escolher todo dia no escuro
Colher a beleza do agora
Durar só o tempo que resta
Restar pelo instante que vai
Esvair-se na dura certeza
De ser abatido pelo infinito
Fugaz, despedaçar no ar
Despetalar sombras aflitas
Deixar o vento varrer
Perecer para não morrer

Jardineiro



Por você
Meu amor é
Tronco forte
Sol ardente
Grão paciente
Sombra protetora
Espinho ciumento
Caule generoso
Tempo infinito
Vento afoito
Atrás de você

Por você
Meu amor é
Firme igual raiz
Fértil como terra
Leve igual uma folha
Livre como uma pétala
Detalhado igual a flor
Simples como a cor
Dedicado e delicado
Igual a você

domingo, 10 de outubro de 2010

Exposto

Vivo em carne viva
Vivo à flor da pele
Vivo a carne em vida
Vivo a pele em flor
Vivo a vida na carne
Vivo a flor na pele
Vivo a vida em vida
Vivo em viva dor
Vivo vivo o amor
Sou carne, pele e flor

sábado, 9 de outubro de 2010

O outro

A pior dor não é a própria dor. Essa já é conhecida. Seus limites, sua extensão. Aprendi a suportar. Controlar. O que mais dói é a dor do outro. Essa dor desconhecida. Não se sabe como é. Como o outro sente, escuta, vê. O que se passa no lugar do outro? Jamais saberei como é. Quais as cores, os sabores, os paladares, os sons, os odores, traduzidos em tantas dores. Nunca vou saber. Mas se a dor do outro dói o tanto que dói em mim, essa dor é quase insuportável.

...

tempos disparam, param
ventos voam, ecoam
tempos separam, reparam
ventos levam, elevam
tempos ventam, passam
ventos passam, sós

1974


O futebol era de botão
A bicicleta, do pivete
O Brasil era tricampeão
A tentação, um chiclete
O cristo era redentor
O surfe, no arpoador

A professora era Vilma
A rua, Nascimento Silva
O sol era de Ipanema
Tinha que ler Iracema
Longe era Copacabana
Minha tia, Sebastiana
Meu vizinho era general
O herói, um policial
O tom era de Jobim
O porteiro, Joaquim

O cinema já não era novo
Minha nascença um estorvo
O teatro ficou sem Oficina
Candelária preparava chacina

A luz era Luis
Martinez de raiz

A ditadura era dura
Tristeza não tinha cura
Ainda havia lobotomia
Muita criança com anemia

Minha mãe parecia feliz
O amigo dela, um juiz
Meu pai parecia afluente
Sua outra mulher, indiferente
Minhas irmãs eram bonitas
Adolescentes aflitas

Guerrilheiro citava Guevara
O estado era Guanabara
A cidade, maravilhosa
Queria ser Guimarães Rosa
O país era o do futuro
Meu medo, o escuro

Reminiscências

Sou memórias, histórias, estornos, entornos, contornos
Sou cores, amores, restos, desertos, pedaços, espaços
Sou indícios, resquícios, desperdícios, vestígios
Sou lacunas, fissuras, espumas, brumas, escuras
Sou apenas palavras dispersas...

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Tempo

Parece que foi sempre
Parece que foi ontem
Parece que foi sonho
Parece que foi noite
Parece que foi hoje
Parece que foi dia
Parece que foi já
Parece que já foi

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Amores líquidos

Dissolver o corpo nos corpos, expostos
escorrer pelas entranhas, estranhas
pulsar por todas as veias, alheias
misturar secreções secretas, inquietas
juntar salivas diversas, dispersas
trocar suores esquecidos, desconhecidos
derreter sem reter, tudo que é sólido
e só desmanchar no ar...

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Amores primeiros

Éramos tão jovens
Você era o mar
Eu era vagar
Você era o vento
Eu sempre atento
Você era o sol
Eu era um anzol
Você era a janela
Eu era uma espera
Você era a cor
Eu era um calor
Você era respiro
Eu era um suspiro
Você era sua boca
Eu era um sorriso
Você comia maçã
Eu fazia poema
Na bela Ipanema
Você era tão linda
E eu era só olhos...

Passagens

A vida é um ir embora
E nem sempre voltar
A vida é um partir
E nem sempre chegar
A vida é um esperar
E nem sempre receber
A vida é um procurar
E nem sempre encontrar
A vida é uma demora
Que sempre tem hora
De um instante acabar

domingo, 3 de outubro de 2010

Amores distantes

Olhar e não poder tocar
Sentir e não poder agir
Amar e não poder amar
Estar tão perto, à distância
Perceber a distância, tão longe
Esquecer de morrer, pra nunca esquecer

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Deserto

Fui com tanta sede, até te exaurir.
E da tua exaustão, se fez minha aridez.
Exausto, sem uma gota, me esgoto.
Incerto, eu deserto. E te liberto.

Silêncio

Se eu pudesse
Simplificar
Aproximar
Modificar
Adivinhar
Proteger
Aliviar
Cuidar
Fazer
Dar
Saber
Apagar
Acertar
Aprender
Responder
Demonstrar
Mas não posso
Em silêncio silencio
Nesse cortante deserto

Ação

Tempos de ação. Tempos de criação. Reflexão, estudo e reclusão. Reclusão na vida, em regime mais do que aberto. Tempos de disciplina. Transgressora. Tempos de liberdade. Incondicional.

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