terça-feira, 16 de novembro de 2010

Temporal

Ando na chuva, Rua do Glicério, centro velho. Chove forte.
Poças de água, carros engarrafados, motos, bicicletas, pedestres.
Homens espalhados pelo chão. Vento e água esfriam meu corpo.
A caminhada me faz transpirar. Mistura térmica desconfortável.
Acabo de descobrir um furo na minha bota. Meus pés começam a molhar.
A chuva aperta, o vento acelera. Meus passos diminuem.
Sons silenciam. Só escuto pensamentos. Burburinhos internos.
Não consigo parar de pensar. Imagens, sons, tudo na minha cabeça.
Minhas meias estão encharcadas. Piso num buraco. Desvio dos obstáculos.
Parados como fotos de jornal. Uma multidão sem rosto.
Todos iguais a mim. Tão diferentes de mim. Todos somos rostos.
Em que estarão pensando todos esses rostos? Não importa.
Roupas molhadas. Botas pesadas. Frio e calor. Chuva e suor.
O burburinho aumenta. Quatro horas da tarde. Esqueci de almoçar.
Não tenho fome. Um pouco de sede. Boca seca. Cabelo molhado.
Um rosto aparece. Na minha cabeça. Vejo seu sorriso em flashes.
Homens sem dentes sorriem também. Nas ruas. Mulheres seminuas acenam.
Estou no meio das prostitutas. Dez reais o programa. Subo a ladeira.
Rua 25 de março. Dia 16 de novembro. Camelôs se enfileiram. Não há espaço.
Vendedores de guarda-chuva. Dez reais também. Fico molhado. Não quero gastar.
Preciso economizar. Endividado. Contas atrasadas. Continuo a caminhar
Um mulher que deve ter sido bonita na juventude olha pra mim, olho pra ela.
Torço o pescoço, imagino sua juventude, paro. Mais chuva...
Meus olhos ardem, chuva ácida, minha pele queima no vento da chuva.
Sinto que estou me consumindo. Vou me dissipar. E seu morresse agora?
Estou sendo sugado pelos meus pensamentos. Minha desorganização triunfa.
Nem sei mais onde estou. Procuro um táxi. Congestionamento. Carros parados.
Não vale a pena. Continuo andando. O frio agora toma conta.
A caminhada é mais lenta. Queria ser outra pessoa por um instante.
Mas tudo que eu tenho sou eu. Sou apenas o que sou agora.
Toda minha vida se resume nisso. Se eu morresse nesse instante seria só isso.
Um homem, botas molhadas, roupas encharcadas, bolsa pesada.
Posso continuar caminhando sem parar, que vai dar exatamente na mesma.
Não há ninguém a minha espera. Nenhuma casa, nenhuma pessoa.
Nenhum animal de estimação. Meus filhos não estão mais comigo.
Não tenho mais ninguém. Nenhum lugar pra chegar. Nada a declarar.
Tenho só o meu corpo molhado no tempo e no espaço dessa tarde de chuva.
Estraguei meu paletó. Tudo que sou é essa tarde do dia 16 de novembro de 2010.

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